Rudolf Bultmann está relacionado entre os grandes teólogos do século XX. Especialista em Novo Testamento, se utiliza da corrente filosófico existencialista para compor suas teorias, dentre as quais se destaca a da desmitologização, que lhe confere notoriedade no âmbito dessa linha interpretativa.
Esse existencialismo que adotou radicalmente confere a sua obra um caráter de negação (grifo meu) a tudo aquilo que não pode ser comprovado fisicamente, ou seja, tudo que está relacionado a uma condição de fora do mundo existente. Dessa forma, toda e qualquer afirmação de elementos sobrenaturais é classificada por ele como sendo mito. Isso se aplica, principalmente as narrações contidas no texto bíblico referentes a manifestações de milagres, inclusive os de Jesus. Não que o mito não tenha importância, mas que o mitológico não é histórico, pois não se situa dentro das coordenadas espaço-temporais. Para ele, “o mito por excelência é falar de um encontro de Deus com o mundo de nossa experiência (...) ele apenas retém Cristo como evento de Palavra que me interpela hoje na minha fé”.[1]
Como exegeta, ele propõe que os relatos referentes a esse tipo de manifestação são acréscimos posteriores, baseados em conceitos antigos, de modo que não interferem nem conferem veracidade ao ministério de Jesus, que inclusive não precisaria de tais afirmações como parte de sua revelação. Sua obra gira em torno da seguinte questão: “ De que importância se reveste para o homem moderno a pregação de Jesus e a pregação do Novo Testamento em sua totalidade?”[2] Em sua teoria, Jesus, por si mesmo é a única revelação de Deus, sendo sua encarnação a maior e mais completa manifestação de Deus entre os homens, não sendo portanto necessário outros meios para se afirmar a mensagem de Jesus. Ademais, sua mensagem falada, que transmite a excelência de seu pensamento, é o que realmente importa na compreensão que se deve ter acerca de sua vida e ministério.
A ressurreição e a vida são o próprio Jesus, de modo que o Pai lhe concede o poder de dar a vida desde o principio. Assim, a fé na revelação, que é Jesus, não precisa se apoiar em milagres, pois não necessita de muletas, de modo que Jesus nunca fez nenhum milagre com essa finalidade – todos são mitos. Jesus chama o homem para si, que ao crer Nele, já está ressuscitado, por tanto já possui a vida eterna. A revelação é assim o único milagre e não tem necessidade de outros sinais visíveis.
Com isso, Bultmann defende que a mensagem cristã deva ser reinterpretada, livrando-se de seu conteúdo mitológico, sendo portanto reconduzida ao seu autentico e verdadeiro conceito, que nesse caso se trata do kerigma[3]. A desmitologização não seria apenas uma exigência do homem moderno – para qual tais mitos seriam inaceitáveis[4] – mas, de fato, uma exigência da própria fé que, em caso contrário, seria uma fé demasiadamente humana.
É possível compreender as abordagens de Bulltmann e a conclusão que ele mesmo propõe: que “ a desmitologização esclarece o verdadeiro significado do mistério de Deus.”[5] Contudo, parece forçoso quando cita que seja errado “objetar que a desmitologização significa racionalizar a mensagem cristã, que equivale a dissolve-la em produto do pensamento racional do homem”[6], posto que soa contraditório ao existencialismo que ele mesmo adotou.
Contrapondo-se a Bultmann , Oscar Cullmann, outro dos grandes teólogos contemporâneos, em sua obra “Cristo e o tempo”, buscando encontrar o núcleo central da mensagem cristã[7] se levanta como a oposição mais radical de sua teoria de tentativa de redução do evangelho a uma interpretação existencialista, pois defende que a salvação se dá por meio de um processo histórico-salvifico, sendo portanto a essência do cristianismo constituída pelo que ele chama de história da salvação[8], cujos acontecimentos salvíficos se desenrolam na história, dando-lhe significado.
Sua teologia mostra que a história real, com todos os seus conteúdos abordados no texto sagrado e continuamente progressiva é essencial ao cristianismo, justamente o contrário a Bultmann. De acordo com suas ideias, Jesus, sua obra e seu tempo são o único critério exegético de que dispõe o teólogo e fundamentais à fé. É o escaton como salvação atualizada no tempo. Isto situa os fatos salvíficos num contexto favor da humanidade, traçando-os em uma linha ascendente, que vai da criação a parusia. Essa linha temporal pertence assim a Cristo, posto que é antes do inicio, foi crucificado ontem, reina agora e voltará no fim dos séculos.
No entanto, o pensamento de Cullmann não abrange simplesmente, nem se restringe a ser o principal contraponto de uma polêmica antibultimaniana. De fato, se contrapõe também à herança grega, pois compreende que tal cultura não conhece a espera, posto que seu tempo é cíclico – um circulo fechado - num eterno retorno. Dessa forma, buscar salvação no tempo se torna impossível, pois somente seria possível escapando-se do circulo do tempo. Uma eternidade atemporal, metafísica. Também contra o judaísmo, que segundo ele, vive só da espera. Já o pensamento bíblico dá ao tempo uma interpretação linear, de forma ascendente entre o ontem, o hoje e o amanhã. Tal concepção de linha ascendente confere o espaço no qual se pode verificar a realização de um plano divino, dentro de coordenadas temporais. Tempo e salvação se relacionam mutuamente.
Temos com isso a imagem do Cristo que exerce sua funções histórico-salvificas sucessivamente no tempo. A espera cristã dos eventos futuros (parusia) encontra garantia nos eventos cristológicos do passado. Cristo é a esperança da vitória definitiva que virá, fundamentada na imagem dos eventos da crucificação e ressurreição. Assim sendo, a historia da salvação atravessa a historia universal, pois não é uma historia ao lado da historia, antes porém transcorre e faz parte dela. Assim, a revelação de Deus na palavra é revelação na historia, por isso não esgotada. Ele se revela por meio de suas intervenções na humanidade ao longo da historia e, por esses fatos ocorridos, são acessíveis ao juízo consciente de cada homem, pois não podem ser descartados como imaginações das pessoas. Essas revelações abrangem a totalidade da historia, desde o principio, como também até o final dela. Em suma, a historia da salvação caminha pela historia humana.
“A teologia da história da salvação, desenvolvida por Cullmann se diferencia (...) da teologia existencial de Bulltmann que reduz a história da salvação a evento de salvação.(...) Para Cullman, Cristo é o centro da história, para Bultmann Ele é o fim da historia.”[9] Cristo “introduz uma nova divisão do tempo, que deve ser interpretado de acordo com a dialética do ‘já’ e do ‘ainda não’.”[10]
Assim, podemos notar que os estudos de Bultmann abordam que a mensagem do Novo Testamento como está escrita, se sustenta e é expressa a partir da linguagem mitológica e imagem mítica de mundo. Em contrapartida, Cullmann aponta uma tentativa de redução do Evangelho a uma pura interpretação existencial por meio das teorias bultimanianas, pois compreende que a história da salvação, cheia de conteúdos e continuamente progressiva é a essência do cristianismo neotestamentário.
[1] GEFFRÉ, Claude. O neofundamentalismo na igreja. In: Crer e interpretar: A virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 123.
[2] BULLTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia. São Paulo: Novo Século, 2005, p. 15.
[3] Ibidem, p. 29.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem. p. 35.
[6] Ibidem. p. 34 e 35.
[7] Cf. SANTOS, Eduardo da Silva. A escatologia em alguns teólogos protestantes do século XX. In: TEO-COMUNICAÇÃO, loc. Cit., p. 541.
[8] GIBELLINI, Rossino. A teologia do século xx. São Paulo; Loyola, 2002, p. 255.
[9] Ibidem. p. 260.
[10] Ibidem. p. 261.